produção de dendê explora populações negras e indígenas no Brasil
Do Pará à Bahia, o Metrópoles percorreu 5,7 mil quilômetros para denunciar como a cadeia produtiva do dendê impacta povos quilombolas e indígenas. Há histórico de trabalho análogo à escravidão, expropriação de comunidades tradicionais e impactos ambientais
Rebeca Borges06/11/2022 – 05:00
Uma das histórias da mitologia iorubá — base de religiões de matriz africana como o candomblé — conta que Olorum, o Senhor do Céu, deu a Obatalá, o Senhor do Pano Branco, a missão de criar o mundo. Antes de iniciar a jornada, Obatalá consultou o grande conselheiro dos orixás, Orunmilá, que o orientou a fazer oferendas para ter sucesso no dever.
O Senhor do Pano Branco não deu ouvidos aos conselhos e chegou à fronteira do além, comandada por Exu, sem nenhuma das oferendas. O guardião da fronteira ficou magoado e decidiu, então, enviar uma grande palmeira a Obatalá, que tocou o tronco com seu bastão. Da planta, jorrou vinho de palma em abundância. O Senhor do Pano ficou tão embriagado com o líquido dourado que adormeceu debaixo do dendezeiro.
O ouro líquido é sagrado. O fruto, a palmeira, as folhas, o azeite e outros produtos feitos a partir do dendezeiro são considerados joias ancestrais para a cultura negra na Bahia, da economia à espiritualidade.
“O dendê é sustento, é sangue africano dentro desse território. É o dendê que alimenta Nzila, uma divindade do caminho, a exemplo de Exu. A gente se alimenta dessa força do dendê que foi trazida de África para cá.” É o que conta Taata Luangomina, sacerdote do terreiro de candomblé Bem Viver Graciosa, localizado em Valença, na Bahia, a cidade com a maior produção de dendê no estado. O município também abriga parte da comunidade quilombola Graciosa, localizada entre as cidades de Valença e Taperoá.
Com a falta de incentivos para a produção do dendê na Bahia, porém, o plantio migrou para o estado do Pará. A exploração por grandes indústrias transformou o produto sagrado em sinônimo de destruição para comunidades quilombolas e indígenas que vivem no nordeste paraense, onde há pouca relação cultural com o cultivo do dendê, e onde concentra-se a maior parte da produção do fruto no Brasil. Grupos tradicionais acusam as grandes produtoras de dendê de invadir territórios e expulsar moradores, além de causar impactos socioambientais na região e destruir a relação ancestral que o povo tem com a terra.
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
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PRODUÇÃO DE DENDÊ
“Quero saber quando a Justiça vai entregar o que é nosso”, questiona Raimundo Serrão, 62 anos. Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
“Antes do dendê, nós vivíamos felizes porque nós éramos libertos. Nós andávamos por onde queríamos, caçávamos, pescávamos. Ninguém estava impedindo nada. Eles têm medo da gente roubar essas árvores de dendê deles. Mas o nosso direito eles roubaram, nosso direito eles tiraram à força. Quero saber quando a Justiça vai tomar providência para entregar o que é nosso”, questiona Raimundo Serrão, 62 anos, uma das lideranças quilombolas de Tailândia, município paraense.
Distantes geograficamente, Bahia e Pará conectam-se pela cadeia produtiva do óleo de palma. O fio condutor dessa história perpassa séculos e milhares de quilômetros, que foram percorridos pela equipe de reportagem do Metrópoles em busca de relatos sobre os impactos humanos e ambientais da produção do dendê.
A Rota do Dendê no Pará
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
A viagem começa pelo Pará, onde a equipe de reportagem visitou a área que concentra a maior parte da plantação do fruto no país. Em 2020, a unidade federativa destinou 188.542 hectares à colheita de dendê, de acordo com o último levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Somente em 2020, o Pará produziu 2.829.443 toneladas de cachos de dendê.
Segundo o IBGE, 29 municípios paraenses produziram dendê no ano de 2020. No entanto, cinco dessas cidades concentram a maior parte das plantações: Tailândia (61 mil hectares), Tomé-Açu (35.780 hectares), Moju (27 mil hectares), Concórdia do Pará (18.400 hectares) e Acará (14.000 hectares).
Nessas regiões, vivem dezenas de comunidades quilombolas. Apesar da defasagem de dados (esse grupo nunca foi identificado no Censo Demográfico), o IBGE estima que o país tem 5.972 localidades quilombolas, espalhadas por 1.672 municípios brasileiros. Do total, apenas 404 são territórios oficialmente reconhecidos.
Segundo a Fundação Cultural Palmares, o Pará tem 264 comunidades remanescentes de quilombos. Dessas, 206 são certificadas. É em parte das terras quilombolas do nordeste do estado que o dendê impera, nas proximidades do rio Acará.
DISPUTA PELO DENDÊ NO PARÁ
As maiores empresas da região são:
As mesmas se autointitulam como as maiores produtoras de óleo de palma nas Américas. Grupos como Belém Bioenergia Brasil e Marborges também têm destaque na região.
Enquanto a indústria e o agronegócio da palma alimentam a economia paraense, povos tradicionais sucumbem, com a cultura, a história e os costumes enterrados sob o dendê. No estado, o plantio foi introduzido na década de 1970 e contou com grande apoio do governo paraense. O auxílio das autoridades, no entanto, é negado aos grupos que exigem titulação dos territórios quilombolas e indígenas.
Produtoras de óleo de palma (nome pelo qual o dendezeiro também é conhecido) são acusadas de submeter empregados que atuam no plantio, na poda, colheita e manutenção dos dendezeiros a condições precárias de trabalho. A rotina dos trabalhadores, segundo ex-funcionários das maiores empresas do ramo, tem comida apodrecida, uso de equipamentos inadequados, acidentes de trabalho e assédio moral em forma de intimidações contra quem ameaça denunciar, no Pará.
Além disso, comunidades quilombolas e indígenas denunciam a invasão de territórios tradicionais por grandes empresas do ramo, que bloqueiam a entrada dos moradores nas regiões. Esses empreendimentos são acusados de ligação com pistoleiros que ameaçam lideranças comunitárias e devastam culturas centenárias. Outra queixa da população local é a poluição de rios e igarapés pelas grandes fábricas de dendê, devido à aplicação de agrotóxicos e eliminação de rejeitos. As consequências são o adoecimento de crianças e adultos, além da morte de animais. O sagrado enterrado sob as palmeiras de dendê e a ganância do agronegócio.
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
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Já na Bahia, apesar da forte ligação cultural com o dendê, o espaço destinado para o manejo do produto em 2020 foi de apenas 13.060 hectares, com produção de 37.143 toneladas de cachos de dendê durante todo o ano. No estado do Nordeste onde o fruto desembarcou no Brasil pela primeira vez (vindo em navios negreiros, de acordo com pesquisadores), a relação com o dendê passa pelo acarajé e pela moqueca, pelas práticas em terreiros de religiões de matriz africana, tornando-se um símbolo da cultura afro-brasileira.
Apesar de ter grandes empresas instaladas na região conhecida como Costa do Dendê, no baixo sul da Bahia, boa parte do azeite fabricado no local é produzido de forma artesanal por agricultores familiares. A população clama por incentivos do estado para a produção de palma nas fazendas de moradores dos 15 municípios que compõem a costa.
LINHA DO TEMPO
1501
Sequestro de negros africanos para comercialização no ocidente. Início do tráfico negreiro.
1510
Entrada de 250 negros nas ilhas antilhanas (Jamaica, Cuba, São Domingos, Haiti). Jamaica teria sido o primeiro local onde o dendezeiro foi introduzido no Novo Mundo.
1539 – 1542
Chegada das primeiras pessoas escravizadas ao Brasil, na Capitania de Pernambuco. Possível entrada de dendezeiros no país, transportado por feitores.
1949
Introdução de sementes de dendezeiros da Bahia no Instituto Agronômico do Norte (IAN) e produção de estudos sobre a distribuição do dendezeiro nativo na Região Norte do país.
1968
Introdução do cultivo de dendezeiro pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) no Pará.
1973
Lançamento do Projeto Dendê pela Secretaria de Agricultura do Pará e crescimento da empresa Denpasa, responsável pela expansão da dendeicultura na Amazônia.
1980
Criação do Centro Nacional de Pesquisa de Seringueira e Dendê; do Programa Nacional de Óleos Vegetais para Fins Energéticos (Pró-óleo); e do Programa Nacional de Pesquisa do Dendê. No Brasil, havia 11 mil hectares de dendezeiros, com produção de 20 mil toneladas por ano.
1981 – 1994
Crescimento de empresas como Agropalma, Denpasa, CRA, Coacará, Caiaué, Marborges, Yossam e Palmasa.
2007
Assinatura de acordo entre Brasil e Portugal para produção de palma e biocombustível, firmado por intermédio da brasileira Petrobras e da portuguesa Galp Energia. Criação da Belém Bioenergia Brasil e da Biopalma da Amazônia (atual BBF).
2010
Lançamento do Programa de Produção Sustentável de Palma de Óleo no Brasil pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em Tomé-Açu, com 350 mil hectares.
EXPLORAÇÃO DA TERRA
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
Quem nasceu, cresceu e fincou suas raízes no solo das margens do rio Acará sente saudades do passado. Próximo ao município de Tailândia, no oeste paraense, vivem os remanescentes das comunidades quilombolas Nossa Senhora da Batalha, Santo Antonio, Balsa e Gonçalves. A tradição era passada de geração em geração: pesca, caça, colheita, festas e o respeito à terra que acolhia centenas de famílias.
Com a chegada do dendê, tudo ruiu. A expulsão foi violenta: os relatos de quilombolas e pesquisadores da área são de que pistoleiros teriam ameaçado os moradores de morte e, sem ter para onde ir, os grupos se instalaram em pequenas vilas ao redor do território. Há também os que foram subornados para sair da terra onde cresceram. Aos poucos, a terra foi ficando inacessível, bloqueada pelas grades da empresa Agropalma, que chegou ao local em 1982.
“Na implantação dos primeiros gerentes da empresa, eles se mostraram muito solidários. Mas logo mais, de 1989 para 1990, começou uma destruição de vida. A empresa criou toda uma logística para retirar esse pessoal de dentro do território. Há 26 anos que a minha família saiu daqui. Hoje estamos pisando em um solo que era da minha família. Cada uma das famílias tem uma história, viveu situações diferentes. Uns foram expulsos na conversa, outros foram na base do dinheiro, outros foram na frente de pistoleiros”, relembra José Joaquim dos Santos Pimenta, de 49 anos, que nasceu e cresceu no local.
Além de instalar portões na entrada da região, a Agropalma conta com seguranças terceirizados que controlam o espaço. Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
Depois da expulsão, nasceu a Vila Palmares, onde habitam os moradores das comunidades da Batalha e Santo Antônio. Apesar de se instalarem na região, os quilombolas nunca se sentiram confortáveis com a vida fora do território em que nasceram. “Para poder sobreviver, estamos passando por uma fase de metamorfose. A gente não se acostuma. A gente sobrevive um dia após o outro para poder existir no meio da sociedade. Nossos usos e costumes foram para o ralo há muito tempo. Hoje, a gente precisa restaurar a nossa cultura, nosso direito de ir e vir”, defende Joaquim.
Ele é o presidente da Associação dos Remanescentes das Comunidades da Balsa, Turiaçu, Gonçalves e Vila Palmares do Vale do Acará (ARQVA), e representa 314 famílias que vivem na região. O grupo reivindica a titulação de 35 mil hectares de terra. Hoje, a Agropalma possui instalações em 107 mil hectares na região e uma grande safra, com 600,3 mil toneladas de cachos de dendê produzidos em 2021.
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
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O que é sinônimo de riqueza para a empresa representa destruição para os moradores daquela terra. A expulsão não foi a única violência praticada. A Agropalma também cercou toda a área das proximidades do rio Acará e passou a limitar a entrada dos moradores no local. Quem vivia do plantio, da pesca e da caça na beira do rio não tem mais contato com a natureza, que era a maior fonte de recursos do grupo.
“Quando se tira o direito de ir e vir de uma comunidade como a nossa, que precisa do rio para poder sustentar sua família… A empresa chega e barra, cria portão, coloca segurança e não deixa a comunidade passar. Essas pessoas vão ter que voltar para casa, trabalhar uma diária de R$ 38 para comprar um quilo de charque, que custa R$ 40. Você comprou o charque, mas faltou a farinha, faltou o tempero, faltou o óleo, que é R$ 12 a lata. De forma drástica, as pessoas vão perdendo a chance de sobrevivência”, lamenta o presidente da associação.
Os poucos que têm acesso ao espaço alegam repressão por parte da Agropalma. “É um dos problemas pelos quais a nossa comunidade está sendo limitada e não está passando para a beira do rio. Quilombolas aqui da comunidade foram expulsos do rio porque estavam pescando. As alegações da Prosegur [empresa de segurança contratada pela Agropalma] foram de que eles estavam disfarçados de pescadores. Dois homens de idade”, relata Joaquim.
O clima de hostilidade é grande e, segundo a Defensoria Pública do estado, há quilombolas acompanhados pelo programa de proteção de Defensores dos Direitos Humanos na comunidade devido a ameaças de morte. As lideranças acusam os seguranças da Agropalma de roubar objetos pessoais, bicicletas, barcos e outras ferramentas de pesca utilizados pelos poucos moradores que conseguem entrar no local para uso no rio Acará.
Nem mesmo as crianças são poupadas das intimidações. Um quilombola da região, que não será identificado por questões de segurança, relata que funcionários a serviço da Agropalma teriam invadido sua casa em maio de 2022 e cortado o uniforme escolar das crianças.
Crédito: Google Earth
“Cortaram a roupa dos meus filhos, da minha mulher, a minha. Os meus filhos vão completar duas semanas sem estudar. Como falei pra eles: sou pobre. Sou um pai de família de sete filhos. Não tenho condições. Falei para eles: o que vocês fizeram foi um crime. Eu mesmo falei. Queria justiça, que pagassem o prejuízo que fizeram. Se fizessem só com a minha. Mas fizeram com os meus filhos. Fico com medo”, lamenta.
Além de instalar portões na entrada da região, a Agropalma conta com seguranças terceirizados que controlam o espaço. Alguns circulam armados pelo local, conforme mostram imagens cedidas ao Metrópoles. No início de 2022, a empresa também passou a colocar grandes contêineres para bloquear o acesso às estradas que levam ao território reivindicado pelos quilombolas.
Como forma de protesto e de requerer o direito ao território, moradores das comunidades realizaram, em fevereiro de 2022, uma ocupação no espaço contra o bloqueio da passagem. Após acordo judicial, os contêineres foram retirados. A medida também determinou que a empresa fizesse uma lista com nomes dos quilombolas associados à ARQVA para que a entrada deles no local fosse permitida. A ação desagradou os moradores, que desejam acesso livre às terras, sem nenhum tipo de barreira ou restrição.
A reportagem do Metrópoles presenciou a proibição da entrada de quilombolas no território reivindicado pela ARQVA, gradeado pela Agropalma. Na ocasião, os seguranças permitiram somente o acesso dos moradores que tinham nome na lista de associados à ARQVA — apesar de todo o grupo ter passado a maior parte da vida dentro do território que hoje é limitado pela empresa. A entrada da imprensa também foi autorizada, mas somente com acompanhamento de equipes da Agropalma.
Em 2022, a empresa colocou contêineres para bloquear o acesso às estradas que levam ao território reivindicado pelos quilombolas. Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
A luta da comunidade é marcada pela tentativa de oficializar a titulação do território com as autoridades responsáveis. Mesmo com indícios de fraudes no processo de regularização do território ocupado pela Agropalma, as comunidades têm dificuldades para conseguir a titulação da área emitida pelo Instituto de Terras do Pará (Iterpa).
Em 2018, a Polícia Federal investigou esquema de grilagem e apontou a existência de Escrituras Públicas de Compra e Venda emitidas pela Agropalma em um cartório fictício. Os documentos falsos apontavam que a empresa havia comprado e registrado ilegalmente as áreas correspondentes ao espaço que hoje é ocupado pelas fazendas Roda de Fogo e Castanheiras, onde ocorre plantio de dendê. As propriedades são área de pretensão quilombola por parte da ARQVA — que solicitou titulação do território ao Iterpa em 2016.
Após ação movida pelo Ministério Público do Estado do Pará (MPPA), o Tribunal de Justiça do Pará (TJPA) cancelou, em dezembro de 2021, 11 matrículas atribuídas à empresa, e a região voltou a ser propriedade do estado. Na decisão, no entanto, não foi determinada a suspensão das atividades produtivas da Agropalma, que continua operando dentro do território.
Além disso, mesmo após a suspensão das matrículas, a empresa deu início ao processo de aquisição da área das fazendas no Iterpa. Em nova ação, o MPPA pediu à Justiça que o edital de venda das terras seja cancelado. De acordo com a promotora Herena Neves de Melo, do MPPA, o Iterpa deve priorizar a análise da titulação do território quilombola. O argumento também é sustentado pela Defensoria Pública do estado.
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
“É assim que a legislação prevê: se tem pedidos de regularização fundiária de pretensão quilombola e indígena, o estado deve priorizá-los e suspender o processo de compra por parte do Iterpa. Enquanto não houver uma decisão definitiva do estado do Pará, esses conflitos não vão cessar. A empresa tem uma grande contradição de terra em suas mãos”, defendeu Andreia Barreto, defensora agrária de Castanhal. A Justiça ainda analisa o caso.
Não bastasse a invasão de terras de pretensão quilombola, a empresa também é acusada pelos moradores de destruir o bem mais precioso: a natureza. Segundo a comunidade, a Agropalma descarta rejeitos da produção de dendê nos rios e igarapés que banham a floresta. O cheiro da lavagem da produção da palma, apelidada pelos moradores de “tibórna”, é insuportável, descrevem.
“O fedor vai daqui da plantação para a Vila Palmares por volta das 4 horas da manhã. Impregna tudo aqui dentro. A tiborna nada mais é do que a lavagem do processamento de dendê. Aquilo se transforma em um só caldo. A água que sai desse processo é distribuída no rio. Isso traz um fedor insuportável”, conta Joaquim.
Com o despejo, os peixes e a caça morrem, e as plantações não vigoram. Para quem vivia em constante equilíbrio com a terra, a destruição do meio ambiente também significa destruição de vida.
“Nossa luta não é simplesmente pelo fato de querer um pedaço de chão para continuar o nosso sustento. Mas nós não vamos abrir mão do nosso território. Porque lá está enterrada nossa família, nossa história. Lá está enterrada a nossa cultura, lá está enterrada a nossa tradição, lá está enterrada a nossa vida. Temos vinte e poucos anos que saímos daqui. Até a nossa história alguém está roubando de nós”, afirma Joaquim.
Abusos em morte
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
Rezar pelos mortos no Dia da Iluminação era sagrado. Os adultos deixavam as crianças em casa e iam até os cemitérios, levando velas para os que já partiram. Ali, a liberdade reinava e o respeito pela terra e pelos mais velhos era regra.
“Na nossa época, só podia vir quem tinha de 18 anos para cima no Dia da Iluminação. Nossos pais achavam que se fosse menor não podia entrar em um lugar sagrado. Os antigos tinham muitas normas. Eles conheciam mais do que nós, eles tinham mais entendimento”, conta Raimundo Serrão, de 62 anos.
A tradição sempre foi marcada pela relação com a terra, que oferecia tudo o que era necessário para viver: alimento, água, remédio. “A gente praticamente não adoecia, era muito difícil. Pegava remédio no próprio quintal, aquelas folhas, fazia aquele banho e o chá das folhas, e no outro dia estávamos zerados. Todo mundo andava descalço. A pessoa, quando morria na beira desse rio, morria de velho. Mas novo era difícil. E para dizer que o cara matava outro? Não existia isso”, recorda.
Com a chegada da Agropalma, a tradição foi interrompida. Nascido e criado na Comunidade da Batalha, uma das áreas invadidas pela Agropalma, Raimundo lembra, com saudades, da vida antes da chegada do dendê. Ele perdeu a liberdade de circular pelos territórios onde cresceu. Raimundo e a família foram expulsos da comunidade da Batalha no fim da década de 1980. O choro logo vem quando ele se lembra da violência da expropriação: eles foram ameaçados por pistoleiros e obrigados a deixar o local. Anos depois, a violência e as ameaças de morte ainda estão no cotidiano do quilombola. Mesmo com a revolta e a tristeza acumuladas durante anos de expropriação, Raimundo ainda tem esperanças de retornar ao lar.
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
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“Plantei três pés de castanha-do-pará lá [comunidade Nossa Senhora da Batalha]. Hoje ele já dá castanha. Quando a gente tiver no nosso território, vou mostrá-lo. Plantei aos 6 anos, estou com 62 anos. Tem cinquenta e poucos anos. Tem hora que chego onde eu morava e eu choro, acho graça. A gente se divertiu muito. Jogo de bola, muitos amigos. E hoje estamos impedidos de chegar lá”, afirma Raimundo.
Um dos dias mais importantes do ano era a celebração de Finados, quando os moradores homenageavam os que já partiram e enalteciam a força ancestral e sagrada da terra. Raimundo conta que, além da expropriação, a empresa foi responsável por destruir e restringir a entrada em quatro espaços quilombolas e indígenas sagrados que ficavam nas proximidades do rio Acará: os cemitérios Nossa Senhora da Batalha; do Livramento; Santo Antônio e Tembé.
É no Cemitério do Livramento, o mais antigo dos quatro, com 164 anos de existência, segundo a sepultura mais antiga encontrada no local, onde a avó de Raimundo está enterrada. Acender uma vela na cova da matriarca, no entanto, já não é mais possível: o quilombola acusa a empresa de ter destruído as catatumbas. No lugar onde deveriam repousar as velas no dia de homenagear os que já partiram, quem impera é o dendê.
A área do Cemitério do Livramento é uma das poucas que ainda tem acesso liberado às comunidades. Crédito: Arte/Metrópoles
“Tristeza. Uma tristeza a gente não poder ver onde está um parente nosso enterrado. Porque eles destruíram. Para eles, isso aqui não vale nada. Agora para nós… É um tesouro muito grande para nós. Isso aqui é a nossa riqueza. Jogaram as cruzes para a água”, conta Raimundo, com o olhar repousando sobre o que deveria ser um cemitério repleto de sepulturas. Na paisagem, restam apenas algumas cruzes de madeira — a maior parte está quebrada e escondida pelo matagal.
A área do Cemitério do Livramento é uma das poucas que ainda tem acesso liberado às comunidades. Quando vai ao local, Raimundo sente a conexão com os antepassados e o corpo denuncia a saudade do que aquela terra já foi um dia: dos olhos brotam lágrimas.
Ana Maria conversou com a reportagem em frente às grades instaladas pela Agropalma. Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
“Se nós tomarmos posse do nosso território e eu viver ao menos um ano lá dentro, tô feliz. Se quiserem matar podem matar, porque sei que lá vai ficar minha família, meus filhos, meus netos. Eles vão ter onde trabalhar e morar, porque aquilo é nosso”, defende.
O Cemitério Nossa Senhora da Batalha é um dos espaços que ficam dentro da área cercada pela Agropalma. Durante anos, a comunidade tentou entrar na região para, ao menos, realizar a limpeza das sepulturas e acender velas no Dia de Finados, já que a entrada é limitada. Somente em 2021, após determinação judicial, o grupo conseguiu acesso ao cemitério para realizar a limpeza.
A realidade não deveria ser assim, defende Ana Maria Pimenta da Silva, 52 anos, quilombola que vive na Vila Palmares e tem vários familiares enterrados no Cemitério Nossa Senhora da Batalha. Se a história dos seus ancestrais está enterrada naquela terra, embaixo do dendê, nada mais justo que ter seu direito de visitar o local respeitado, defende. O relato é contado em frente às grades instaladas pela Agropalma, após a empresa proibir a entrada no local e permitir somente o acesso da imprensa e do presidente da associação.
O desabafo é feito em meio às lágrimas e à tristeza de ser afastada do seu lar. Ao falar sobre a proibição, Ana eleva a voz. O som sai embargado e ofegante, e a pele fica corada. É a revolta de ter sido expulsa de onde nunca deveria ter saído.
“Quando nós nascemos, nascemos lá, na beira deste rio. A minha família mora lá, plantada dentro daquele cemitério. Hoje a gente não pode ter acesso. Nós fomos nascidos e criados comendo caça, comendo peixe. Saí do ventre da minha mãe bem aí”, aponta para a terra atrás dos portões da Agropalma.
“Pela idade que eu tenho, me sinto uma pessoa muito humilhada. Hoje em dia, eu não posso nem vir para aqui. Quando eu chego lá e me dá uma tristeza muito grande de ver o jeito que está o cemitério. A comunidade lá como era, como tá o matagal. Nós só queremos o que é nosso. O que era da minha mãe, o que era do meu pai”, lamenta.
Quem olha para qualquer direção nos arredores da aldeia indígena Turé-Mariquita, na zona rural de Tomé-Açu, no Pará, vê sempre a mesma imagem: centenas de pés de dendê. A monocultura se espalha por ao menos 56 mil hectares, de acordo com a Brasil Bio Fuels (BBF), empresa proprietária das plantações próximas à comunidade.
A paisagem, no entanto, não é nada convidativa. Além das palmeiras espalhadas por todo canto, há, de tempos em tempos, nuvens de insetos que atrapalham a vida de quem mora ali. Moscas, borboletas e embuás [animal rasteiro, também conhecido como piolho-de-cobra] começaram a surgir entre as plantações dos indígenas da aldeia.
Pimenta, mamão, mandioca e outros vegetais que faziam parte do cotidiano e da tradição indígena já não sobrevivem. Quando não são tomados por nuvens de insetos, ficam enfraquecidos. A comunidade argumenta que o motivo é a má qualidade do solo — consequências do uso de agrotóxicos nas plantações de dendê, alegam.
A BBF atua na região desde novembro de 2020, quando comprou a antiga Biopalma da Amazônia — subsidiária da Vale, que começou a atuar no local por volta de 2008.
Lúcio Gusmão é uma das lideranças que residem e resistem na Terra Indígena Turé-Mariquita. Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
“Hoje, falar dessa história é meio sem sentido para a gente. Depois que essa empresa chegou, ficamos ilhados aqui dentro”, relata Lúcio Gusmão Tembé, 52 anos, cacique da aldeia Turé-Mariquita.
Pai de seis filhos e avô de 17 netos, Lúcio é uma das lideranças que residem e resistem na Terra Indígena Turé-Mariquita, habitada por descendentes do povo tembé. O território, homologado e reconhecido pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em 1991, tem área estimada em 145,13 hectares.
Uma das lutas da comunidade é pela ampliação do espaço já demarcado, que não contempla toda a região habitada pelos indígenas tembé. Ao todo, há quatorze aldeias na região: Turé, Aldeia Nova, Pytawã, Turury, Purangueté, Wiranu, Nauru, Dente de Onça, Iriwara, Wirapuru, Kar’zar, Utinga, Tekenay e Arar Zenay.
O grupo alega que a plantação de dendê da Biopalma e da BFF não respeitou a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). De acordo com o tratado internacional, povos indígenas, quilombolas e tradicionais devem ser consultados a cada vez que medidas legislativas ou administrativas afetarem os limites do território ou seus costumes.
Eles também defendem que a empresa e o poder público não respeitaram o estudo de componente indígena, o qual analisa impactos de empreendimentos sobre o território tradicional.
O funcionamento do campo da BBF é anunciado pelo vento, que espalha o odor da tiborna, descrito pelos indígenas como “insuportável”. O resultado é destruição: a caça morre, os peixes ficam contaminados, a água fica inapropriada para o banho e para o consumo, contam.
Maria Deusalina da Silva Portilho é cacique da aldeia Pitàwà, apelidada carinhosamente de Deusa. Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
“Meu pai saía de manhã. Quando chegava, à tarde, vinha com caça para nós comermos. Hoje em dia, não tem mais caça, não tem mais peixe. Nossa água era bonita para tomar banho, pra nós comermos na beira do igarapé. Hoje em dia, se não tiver dinheiro para comprar comida em Quatro Bocas [distrito de Tomé-Açu], a gente morre de fome”, conta Maria Deusalina da Silva Portilho, de 63 anos, cacique da aldeia Pitàwà, apelidada carinhosamente de Deusa.
Além da destruição do meio ambiente, a plantação de dendê traz problemas de saúde: depois da tiborna, aparecem as doenças. Bolhas por toda a pele, dores de cabeça, náuseas e diarreia.
Paulo Nailzo Pompeu Portílio, de 27 anos, cacique da aldeia Braço Grande Turiwara, relembra o desespero dos filhos após terem tido contato com a água de um igarapé da região. Ele conta que uma das crianças, de apenas 3 anos, precisou ser levada rapidamente ao Posto de Saúde Indígena, mantido pela Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, na região.
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
CCrédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
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Os problemas de saúde também são relatados pela cacique Deusa. “Dor de cabeça e tontura demais. Vômito. Eu não tô muito bem. Estou andando aqui mas não estou muito bem, estou com dor de cabeça. Tontura”, relata a cacique.
O Metrópoles questionou o Ministério da Saúde sobre casos relacionados à tiborna no posto de atendimento da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) da região. A pasta não respondeu às perguntas, mas disse que equipes multidisciplinares de saúde do posto realizam “atendimento de rotina” à população do município. No polo-base de Tomé-Açu, que conta com três unidades básicas de saúde indígena, foram realizados 3,5 mil atendimentos entre janeiro e maio de 2022.
Não bastasse a destruição ambiental, os moradores das aldeias não têm descanso nem durante a noite: seja pela incidência de insetos, pelo barulho de carros e motocicletas desconhecidas passando dentro do território ou pelo ruído de drones que circulam nas aldeias. De acordo com os moradores, os aparelhos são monitorados pela BBF para vigiá-los. A empresa nega.
“Hoje em dia, a gente não pode mais dormir sossegado. Nós não dormimos. Tem muito carapanã, muito maruim [mosquitos]. Cobra a gente acha dentro da nossa casa. A gente passa a noite sem dormir, é muita zoada de moto, de carro que a gente não sabe nem quem é”, conta Deusa.
“Querem mesmo é nos matar”
A violência sofrida pelas comunidades tradicionais se estende para além dos limites do território reivindicado. Além dos danos socioambientais, a BBF é acusada de disseminar informações falsas e ataques racistas contra os grupos quilombolas e indígenas da região. Funcionários da empresa já participaram de diversas manifestações nos municípios dos arredores, com cartazes e frases de ordem contra os indígenas.
“Eles colocam os seus funcionários para jogar ameaças contra nós, para jogar comentários racistas contra nós. E isso dói. Dizem que nós índios somos vagabundos, preguiçosos, que a gente não trabalha. Mas nós indígenas já vivemos há mais de mil anos sem depender de ninguém. Tem pessoas que falam que têm nojo de nós. Isso dói na gente”, lamenta o cacique Lúcio Tembé.
As difamações também são sofridas na pele por Paratê Tembé, filho do cacique Lúcio e presidente da Associação Indígena Tembé de Tomé-Açu. O líder, de 26 anos, acusa a empresa de criar páginas falsas para acusá-lo de crimes. Paratê alega que já foram abertos mais de 600 boletins de ocorrência contra ele. “Já me enquadraram em quase todo tipo de crime. Formação de quadrilha, bandido, assaltante. Tudo que você imaginar. E estamos conseguindo reverter todos os inquéritos”, conta.
Na região, impera o medo da morte. As ameaças tornaram-se cotidianas. Paratê acusa a BBF de contratar uma milícia para intimidar as lideranças indígenas, quilombolas e ribeirinhas que lutam pela retomada dos territórios.
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
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“Eles andam à minha procura constantemente. Há um tempo, abordavam qualquer um que saía da aldeia para a cidade. Mandavam todo mundo sair do carro, crianças, e perguntavam sobre mim. Queriam me pegar a qualquer custo. Denunciamos ao estado, e a empresa retirou essa milícia. Minha irmã foi pega por esse grupo e ameaçada de ser morta, queimada viva. Eles usam de todas as formas para tentar nos calar e intimidar o movimento. O que eles querem mesmo é nos matar”, afirma Paratê.
O receio da morte de lideranças tradicionais no nordeste do Pará é um dos tristes elos que ligam as comunidades da região. Após o assassinato de Nazildo dos Santos Brito, ex-presidente da Associação de Moradores e Agricultores Remanescentes Quilombolas do Alto Aracá (Amarqualta), em 2018, a sensação de que há descaso do poder público sobre a situação só aumenta.
“Toda liderança que luta em prol da sociedade, do povo menos favorecido, só é reconhecida depois que morre. Vira uma lenda. A gente vê isso se repetindo. É bem provável que [a minha morte] possa acontecer. Medo a gente não tem, quando a gente luta em prol de um ideal, dos nossos filhos e da nossa família, não tem medo de morrer. Mas a gente sabe o quanto isso vai ser doloroso. A gente já viu muitos de nossos parentes morrerem, é algo que se repete”, lamenta Paratê.
O líder afirma que há descaso das autoridades. Mesmo com pedidos de proteção solicitados a órgãos como Polícia Federal e Funai, a comunidade ainda se sente abandonada.
“Apesar dos pedidos de proteção que a gente tem feito às autoridades, nenhum foi atendido. A gente sempre solicitou, até mesmo à Polícia Federal. A própria Funai, que deveria estar dando um amparo, hoje não está nem aí. A Funai era para estar aqui ouvindo a nossa realidade, fiscalizando. A gente está abandonado pela própria instituição que foi criada para nos defender”, lamenta Paratê. Procurada pela reportagem, a Funai não se manifestou sobre o assunto.
O Metrópoles enviou uma série de questionamentos à Polícia Civil do Estado do Pará sobre os conflitos entre as empresas e a comunidade indígena. No entanto, a corporação não respondeu às perguntas.
Procurada pela reportagem, a Superintendência Regional da Polícia Federal no Pará afirmou que disputas por terra são tratadas na esfera cível quando não envolvem crimes. No entanto, a corporação confirma ter recebido denúncias e, em maio deste ano, instaurou inquérito na Delegacia de Defesa Institucional (Delinst), na Superintendência da PF do Pará, em Belém.
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
“Esse inquérito também vem recebendo diversas comunicações de ocorrências registradas na Polícia Civil do Pará, nos últimos anos, envolvendo indígenas e a empresa citada. A PF já participou de três reuniões presenciais com o objetivo de ouvir os envolvidos e continuar as investigações”, informou a corporação.
“Se a gente ficar quieto em casa, é morte certa. E o nosso pessoal vai continuar. Se a gente for lutar, corre risco de ter um resultado positivo para a comunidade. Ou infelizmente…”, afirma Josias Dias dos Santos, 34 anos, também conhecido como Jota, atual presidente da Associação de Moradores e Agricultores Remanescentes de Quilombolas do Alto-Acará (Amarqualta).
As palavras de Jota são interrompidas pelo receio de ter a vida ceifada por lutar pelos direitos de seu povo. Marcado por estradas esburacadas e repletas de lama, o acesso às seis comunidades quilombolas que formam a Amarqualta é precário.
Ao sair do distrito de Quatro Bocas, em Tomé-Açu, são cerca de 2 horas de viagem de carro por pistas de terra batida até chegar ao território, que faz parte da zona rural do município de Acará. Em uma dessas estradas ocorreu a execução a tiros de Nazildo dos Santos Brito, em 2018. Ele estava em cima de uma moto e foi surpreendido por trás, alvejado com 20 disparos de arma de fogo.
Ex-presidente da Amarqualta e liderança quilombola, Nazildo foi morto após se opor à venda de um terreno na região para a BBF. De acordo com a associação de quilombolas, o espaço faz parte do território reivindicado pela comunidade, mas foi comprado por fazendeiros.
MAPA DAS DISPUTAS
Desde 2013, o grupo pede ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a titulação dos 20 mil hectares onde seus antepassados, descendentes de escravizados, viveram durante anos. O território da Amarqualta tem aproximadamente 2,5 mil moradores e engloba seis comunidades: Vila Formosa, Turé, Dezenove de Maçaranduba, Ipitinga Mirim, Ipitinga Grande e Monte Sião, certificadas em 2013 pela Fundação Cultural Palmares.
De acordo com a associação, ao longo dos anos, parte do território foi invadida por madeireiros e grileiros. Com a chegada do dendê, os espaços começaram a ser vendidos para as grandes empresas do ramo. “O Nazildo impediu que houvesse a venda de uma dessas áreas, porque ela já havia sido definida como área de pretensão quilombola. A gente queria essa área que já havíamos perdido há alguns anos”, conta Jota.
Nazildo morreu assassinado e três pessoas foram acusadas pelo crime. As investigações apontam que o mandante foi o fazendeiro José Telmo Zani, que ainda segue impune pelo delito.
Sem apoio das autoridades policiais, esquecidos pelo poder público e ilhados em meio ao dendê com as consequências dos impactos socioambientais da indústria, os moradores da região temem que o pior possa acontecer.
Confrontos entre quilombolas e funcionários da BBF são comuns na região. A tensão é tanta que as lideranças da Amarqualta criaram uma espécie de guarita na estrada que leva ao território para monitorar a entrada de quem chega ao local. Os moradores da comunidade querem ser ouvidos e não se intimidam: ao lado dos indígenas e dos ribeirinhos da área, realizam manifestações na frente dos polos da BBF.
Agressões e ameaças são frequentes durante os protestos. Imagens cedidas ao Metrópoles, gravadas em julho de 2022, mostram centenas de funcionários da BBF vestidos com o uniforme da empresa, encapuzados e armados com pedaços de madeira. Eles avançam em direção a um grupo de quilombolas. O conflito é mediado por seguranças da empresa Stive Segurança, contratada pela BBF.
Moradores da comunidade se reúnem na entrada do território quilombola, onde montaram uma guarita para impedir a invasão de empregados da empresa BBF. Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
“Tenho medo de ter o mesmo destino do Nazildo, que foi marginalizado, processado, preso e depois executado. Não tem como você pensar nessa situação e não passar mal. Mas alguém tem que lutar pelos nossos direitos. É questão de sobrevivência. Não temos a opção de ficar confortáveis. Ou morremos de joelhos, ou lutando. E está no nosso sangue a resistência. Somos guerreiros”, afirma Jota.
Sobre a titulação do território da Amarqualta, o Incra afirmou, questionado pelo Metrópoles, que o status da solicitação é “início de processo”. O procedimento foi aberto em 2013, há nove anos, e segue em fase inicial. Questionado pela reportagem, o Incra informou que a “capacidade operacional e a disponibilidade orçamentária e financeira” limitam a finalização do processo.
Segundo o instituto, não houve nenhuma visita de equipes técnicas do Incra ao território reivindicado pela Amarqualta. “A Instrução Normativa Incra nº 57/2009 somente prevê a realização de visitas técnicas às comunidades quando os trabalhos do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) forem iniciados, o que não é o caso da comunidade citada”, informou a instituição.
Ainda de acordo com a autarquia, não há previsão de prazo para concluir a titulação do território da Amarqualta. “A previsão de titulação da comunidade passa a existir depois de os trabalhos técnicos do RTID serem concluídos e aprovados pelas instâncias colegiadas do Incra, visto que no referido relatório é definido se existe direito da comunidade à titulação e qual a localização e a área do território”, informou.
Questionada pelo Metrópoles, a BBF informou que não atua de forma irregular. “Com relação especificamente à Amarqualta, foi realizado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) no qual ficaram delimitadas as áreas da empresa e da referida associação, corroborando que o plantio se dá apenas em áreas de posse da BBF”, afirmou a companhia.
Cercados pelo agronegócio
Além de ansiar pela titulação de seu território, os quilombolas do Alto-Acará lutam por mais políticas públicas. Somada ao medo da morte pelos conflitos por terra, está a dificuldade de viver em um local de acesso precário, retrato do descaso da Prefeitura de Acará, defendem os moradores. O esquecimento, no entanto, é proposital, alegam.
“As pessoas não têm estradas para levar seus produtos para a cidade. O transporte fluvial que existia foi retirado pela prefeitura há alguns meses. Isso parece proposital. A gente fica isolado em uma ilha, cercados pelo agronegócio, que é agressivo. Isso faz com que as pessoas se sintam desestimuladas de estar neste local e acabem, mesmo sem preparo e formação, indo para a cidade. Isso causa todos esses impactos nas periferias, por conta dessa falta de estrutura”, argumenta Jota.
A situação das estradas até as comunidades fica pior com a passagem de grandes caminhões da BBF, que levam ao território da Amarqualta o dendê colhido nas plantações circunvizinhas (e invasoras). O peso dos veículos, somado às chuvas e à terra, acaba causando grandes buracos nas vias.
A passagem pelo local também é dificultada pela própria empresa: de acordo com Jota, parte da estrada foi destruída por funcionários da corporação, que abriram uma vala para dificultar o acesso de quilombolas ao local. A via precisou ser reconstruída pelos próprios moradores, em um mutirão.
A situação das estradas até as comunidades fica pior com a passagem de grandes caminhões da BBF. Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
“Havia uma pessoa na comunidade que tinha uma bolsa, questão de saúde, e tinha que trocar de tempos em tempos. Faltava um dia para a pessoa ir para a cidade trocar. Também tinha o ônibus da colônia que levava as pessoas para fazer compras na cidade. Tinha que fechar [a vala]. A gente não tinha máquina, a empresa não faria. A gente pegou, organizamos um mutirão e fomos. O dia inteiro no sol quente, puxando terra melada de água de chuva”, relembra Jota.
O acesso a serviços de saúde é um dos inúmeros problemas que afetam a comunidade. Segundo Jota, o hospital mais próximo fica a 2 horas de distância. “Tem que pegar uma moto ou alugar um carro particular para poder ir. Se quiser uma ambulância, precisa fazer o pedido, tirar alguém da comunidade, de moto ou de carro, e marcar em outra vila para poder receber o atendimento. A ambulância não entra no território porque as estradas não têm condições”, lamenta o presidente da associação.
Assim como as demais comunidades quilombolas e indígenas da região, os moradores do espaço sofrem com os impactos ambientais do dendê. A água é inapropriada para consumo, e os rejeitos da produção da BBF são jogados nas proximidades dos igarapés, alegam os moradores. Em um vídeo gravado por Jota, é possível ver larvas em meio à chamada tiborna, espalhada pelos dendezais.
Até mesmo o lazer é negado ao povo. “O nosso parque de diversões era o rio. Pular na água, brincar. Hoje a gente está limitado, não podemos mais fazer. Se for beber, é muito pior, porque dá diarreia. Vez ou outra a gente vê peixe morto, boiando”, conta o líder. As refeições também são momentos de indignação: é impossível almoçar sem ser interrompido pela grande quantidade de moscas que voam no local. A incidência de insetos após a chegada do dendê impactou o cotidiano dos moradores.
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
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“A gente não consegue mais ter uma refeição em casa em paz. Eu tenho vergonha de chamar um amigo do Acará, de Tomé-Açu ou de Belém para vir passar um final de semana em casa e a gente comer um peixe frito ou assado com açaí, uma coisa que a gente gosta muito. Não tem possibilidade de isso acontecer. A gente come alguma coisa no almoço e deixa o peixe para a janta. Só pode manusear o peixe à noite, e se a lâmpada estiver forte vai dar mosca”, explica Jota.
O maior desejo do líder é que a comunidade conheça seus direitos — e que eles sejam garantidos pelas autoridades. “Na Constituição Federal de 1988 [diz]: vocês têm direito ao território e a políticas públicas. E nós passamos essa dificuldade de isolamento, de fragilidade. A gente corre atrás desse direito. Se a gente ficar em casa, as empresas vão formar um muro ao redor do nosso território, vão impedir o nosso acesso. Vão nos limitar em tudo”, afirma o líder.
Segundo o Ministério Público do Estado do Pará (MPPA), a Promotoria Agrária já instaurou seis procedimentos extrajudiciais envolvendo a BBF. Dois deles foram abertos neste ano e investigam os conflitos agrários entre a BBF, indígenas e quilombolas e o despejo de rejeitos da empresa nos rios e igarapés da região.
Em nota, a BBF afirmou seguir as “melhores práticas internacionais para o manejo sustentável da palma” e ressaltou que usa “somente produtos permitidos por lei, não utilizando agrotóxicos em regiões próximas às terras indígenas e quilombolas”.
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
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“A empresa realiza monitoramento no entorno das áreas de atuação e nunca detectou valores de substância química em concentrações que não sejam seguras à saúde pública nem acima do definido pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). A companhia é certificada pelo Selo RenovaBio, credenciada pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) e o Selo Biocombustível Social, pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA)”, alegou o grupo.
Racismo ambiental
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As inúmeras violências sofridas pelos povos tradicionais que perderam seus territórios para o dendê são, na visão de especialistas, reflexo do racismo enraizado na sociedade brasileira. Com a negligência das autoridades públicas e o monopólio das grandes empresas na região, quilombolas e indígenas passam a ser estigmatizados dentro dos municípios, vistos como “inimigos”. É o que explica Elielson Pereira da Silva, especialista em Desenvolvimento Socioambiental e professor da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA).
Elielson Pereira da Silva é especialista em Desenvolvimento Socioambiental e professor da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA). Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
“Tem se reproduzido um discurso de que essas demandas por reconhecimento de direitos territoriais seriam inimigas do emprego, estariam ameaçando a permanência dessas empresas. Isso contribui para o processo de racismo. Pessoas que não são executivos das empresas, mas acabam reproduzindo no seu cotidiano, internalizando esse discurso. Quando você nega a existência do outro a partir desses estigmas que são violentos, você termina por culminar em uma política de inimizade”, analisa o professor.
A destruição não é apenas territorial, é também simbólica. Apesar de ser extremamente significativo para povos pretos e tradicionais em outras regiões brasileiras, como na Bahia, o dendê não faz parte da cultura dos quilombolas paraenses. A chegada da monocultura a essa região transformou toda a forma de viver dessas comunidades, explica Raimundo Magno Cardoso Nascimento, consultor de projetos da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará (Malungu) e morador do quilombo África, localizado no município de Moju.
“Dendê não se come com farinha. Dendê, para nós, da nossa região, não serve para nada, porque não temos a cultura de utilizar nem sequer os óleos extraídos. Ele vem e faz uma mudança significativa da nossa cultura, e, com o passar do tempo, temos percebido a perda dos territórios. Não falo necessariamente do território geográfico da terra, mas da perda do território do corpo, da alma, do conhecimento, do saber, das relações que a comunidade tem. Isso acaba sendo substituído”, afirma Magno, que também é mestre em Sustentabilidade Junto a Povos e Territórios Tradicionais, pela Universidade de Brasília (UnB).
O processo é uma espécie de modernização das violências sofridas por pretos e indígenas no Brasil desde a colonização do país. “A gente observa, ao longo da história, a negação de que pretos são cidadãos, de que têm alma. Isso é uma máxima pregada durante muito tempo. Depois se tem, por muito tempo, essa questão do pelourinho, que eu chamaria de pedagogia da pena, onde nossa gente era surrada em praça pública como técnica de aprendizagem. Posteriormente temos a negação desenfreada dos contextos da religiosidade da nossa gente, a endemonização dos nossos saberes religiosos. Sempre foi assim. Nos resta lutar”, defende o quilombola.
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
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“Olho para as populações tradicionais como pessoas de outros mundos, com outro entendimento, outra cultura, outra vivência. A gente consegue multiplicar nossa história a todo momento. Uma criança muito pequena e um senhor muito idoso conseguem conversar. E essa criança cresce com esse entendimento. Não vão conseguir nos apagar.” Raimundo Magno, coordenador da Malungu, mestre em Sustentabilidade Junto a Povos e Territórios Tradicionais e habitante do quilombo África, em Moju (PA).
exploração do corpo
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
O impacto deixado pelo rastro do dendê vai além das marcas na terra habitada por povos tradicionais. O trabalho nas grandes indústrias também expõe outras problemáticas do cultivo de palma no Brasil.
A rotina de quem trabalha nas plantações de dendê no Pará é dura. Em Tailândia, cidade localizada a 272 quilômetros de Belém, grande parte dos empregados está a serviço de empresas como Agropalma e Tauá Brasil Palma (antiga Belém Bioenergia Brasil), sediadas nas redondezas do município. Os trabalhadores saem de casa entre 3h30 e 4h da madrugada e aguardam os ônibus da empresa nas esquinas da cidade.
Em muitos casos, a espera é solitária. É possível ver funcionários sozinhos no silêncio das ruas, sentados sobre galões de 5 litros de água, entregues pelas organizações aos empregados que passam horas plantando, colhendo, podando e limpando o campo.
Outros trabalhadores preferem aguardar o veículo na companhia de familiares e amigos. Grupos também se reúnem nas padarias e lanchonetes da cidade, e aproveitam para tomar o café da manhã antes de o dia raiar.
Por volta das 4h30 da madrugada, multidões transformam as esquinas escuras da cidade em um mar laranja — a cor do uniforme dos locais produtores de dendê. Os ônibus chegam às 5h e levam os funcionários até a sede das empresas. A Tauá Brasil Palma e a Agropalma ficam entre 20 e 50 quilômetros de distância do centro de Tailândia.
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
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Ao chegarem às empresas, os funcionários iniciam a dura e arriscada tarefa de plantar e colher cachos de dendê. O trabalho é perigoso: tanto pelo uso de utensílios pontiagudos, como foices, quanto pelo risco de acidentes na hora da extração do fruto e das folhas das palmeiras, repletas de espinhos. Além disso, em alguns casos, os campos onde a colheita ocorre, chamados pelos trabalhadores de “parcelas”, são repletos de buracos e animais peçonhentos.
Retrato da violência
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
O cenário das condições de trabalho nos municípios onde o dendê impera é preocupante. Dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas apontam o número de trabalhadores resgatados em condições degradantes entre os anos de 1995 e 2022.
Dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas
(entre 1995 e 2022)
Em 2020, o Ministério Público do Trabalho da 8ª Região (Amapá/Pará) realizou, em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), um estudo sobre as condições de trabalho no setor. Os principais problemas encontrados foram incidência de trabalho infantil, condições precárias de trabalho nos campos de cultivo do óleo de palma e discriminação de gênero.
Em janeiro de 2021, o MPT determinou a instauração de notícias de fato contra sete empresas do setor, a partir do recebimento de denúncias de possível servidão por dívida de pequenos produtores rurais que fornecem insumos para a agroindústria; possível existência de trabalho infantil; e possível discriminação de gênero.
Marcas na pele
As cicatrizes de Raimundo dos Santos Cardoso, 51 anos, morador de Tailândia, espalham-se pelo rosto — na altura dos lábios — e pelos braços. Ex-funcionário de uma empresa produtora do óleo de palma no Pará, o trabalhador sofreu três vezes acidentes durante o trabalho no campo. Os casos ocorreram entre 2008 e 2009.
O acidente mais grave aconteceu durante a atividade de poda das folhas antigas das palmeiras. Raimundo lembra que uma das palhas do dendê caiu em seu rosto durante o corte. Os espinhos da planta eram grandes e perfuraram o capacete utilizado pelo homem no trabalho, machucando a parte superior dos lábios.
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
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Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
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“Quando você sofre um corte com um ferro qualquer é muito doído. Mas a furada de um espinho de dendê triplica a dor. Ele esquenta, inflama imediatamente. Não é fácil, é muito difícil. Só quem já passou por isso sabe distinguir como é o sacrifício, a dor. A pressão é grande”, relembra.
Raimundo conta que o socorro foi imediato. “Graças a Deus. E ao meu parceiro de trabalho. Eu estava podando e ele estava juntando as palhas que eu cortava. Esse meu parceiro me socorreu imediatamente”, afirma. Ele foi encaminhado ao ambulatório da empresa e depois levado a um hospital.
Esse não foi o primeiro acidente, no entanto. Em outra ocasião, também durante a atividade de poda, Raimundo foi atingido por uma série de folhas secas, repletas de espinhos. Ele foi levado imediatamente para o ambulatório e, no local, parte dos espinhos foi retirada. No entanto, o sofrimento não terminou naquele momento.
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
Crédito: Franz Eugen Köhler / Domínio Público
“Me levaram para o ambulatório, tiraram vários espinhos. Depois me deram um atestado. Geralmente eles davam de sete dias, quando era um acidente considerado grave. No oitavo dia eu estava lá para trabalhar de novo. Depois foi inflamando. Inflamaram três espinhos aqui [aponta para o braço]. Depois tiraram. Parecia não ter mais, de jeito nenhum. Voltei a trabalhar e, uns dois, três meses depois, inflamaram mais uns dois. Eu tirei. Tirei porque ele sobe quando inflama, ele sobe para a superfície [da pele]. É só a gente furar. Sai aquele pus e o espinho sai junto”, relata.
Raimundo foi demitido de duas empresas do ramo e deixou de trabalhar nas plantações de dendê em meados de 2016. Além de ter atuado durante anos como trabalhador do campo, ele também dedicou parte de sua vida à atuação no Sindicato dos Empregados e Empregadas Rurais de Tailândia (Sindter), do qual faz parte até os dias de hoje.
De acordo com o sindicalista, a mobilização dos empregados tem gerado melhorias nas condições de trabalho. Mas o caminho ainda é longo. “Acidente nunca é normal. Mas que era quase que cotidiano, era. A empresa vive em testes constantes. A fase de teste na empresa que cultiva dendê nunca acaba. Sempre tem teste. Isso significa que depois foi melhorando, foi reduzindo a quantidade de acidentes. O sindicato também, através da cobrança do trabalhador, foi ajudando”, relata.
Ex-funcionário da BBF demitido por expor problemas da empresa de dendê nas redes sociais. Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
Intimidação
“Eu tenho medo de que ceifem a minha vida.” A insegurança faz parte do cotidiano de um ex-funcionário da Brasil Bio Fuels (BBF), demitido após denunciar, em uma rede social, as más condições de trabalho na empresa. Depois de relatar publicamente que a alimentação, o transporte e o equipamento de proteção individual (EPI) oferecidos pela organização eram inadequados para o trabalho, o funcionário passou a receber ameaças. A identidade do ex-empregado não será revelada para preservar sua segurança.
“A gente não se sente seguro trabalhando no campo. O campo da BBF está em péssimas condições. Eles não têm limpado ultimamente, tem parcelas lá que são muito ‘cerradas’ e sem falar que tem muito inseto, e animais como cobra, aranha, escorpião. A gente já chegou a se deparar, em uma parcela, com cinco serpentes. A gente fica um pouco constrangido de trabalhar depois que a gente se encontra com esses animais no campo. E sem falar do risco que a gente corre de cair em buracos, porque as parcelas não são limpas e a gente não consegue ver o solo”, relata o trabalhador.
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Outra queixa é sobre a comida oferecida aos funcionários. De acordo com o trabalhador, o almoço é servido em embalagens de isopor e chega à sede da empresa por volta das 9h. A comida é servida às 11h30, mas nem sempre é refrigerada antes do almoço. “Às vezes a gente encontra até alguns insetos na alimentação. A gente não sabe que horas essa refeição é colocada nesse marmitex. Então, quando chega para gente já vem tudo mole”, relata o ex-empregado.
Os problemas são muitos. As luvas entregues aos empregados são de tecido fino, inapropriado para o manejo das palhas repletas de espinhos. Os ônibus que levam os trabalhadores estão velhos e, às vezes, ficam lotados de passageiros, pois não há veículos suficientes para todas as equipes.
Além disso, a empresa é acusada pelo funcionário de obrigar os empregados a participarem de manifestações contra grupos indígenas e quilombolas. Imagens cedidas ao Metrópoles mostram dezenas de empregados da BBF em um ato contra o povo indígena tembé, que acusa a empresa de invadir território tradicional. “Os tembés querem acabar com nossos empregos”, consta em um dos cartazes segurados pelos funcionários.
O deputado estadual Delegado Caveira (PL) participou da manifestação e endossou o discurso defendido pelo presidente Jair Bolsonaro (PL). Crédito: Reprodução
A manifestação contou com a participação do deputado estadual Delegado Caveira (PL), que disparou frases em tom de ameaça contra os tembé e endossou o discurso defendido pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) sobre o porte de armas de fogo. “Para defender a vida, onde a Justiça não alcança, a pólvora tem que alcançar. Por isso o nosso presidente Jair Messias Bolsonaro quer o homem de bem armado. Quando acontece qualquer atrocidade com vagabundo, ‘o direitos humanos vai lá’ ”, disse.
Segundo o ex-funcionário demitido, há intimidações contra os trabalhadores que se recusam a participar dos atos. Além disso, a empresa coloca os empregados para participar de conflitos contra as comunidades tradicionais, além de descaracterizá-las como povos indígenas ou quilombolas.
“A empresa pede que a gente vá, que a gente dê apoio, e, como tá na data marcada do nosso trabalho, eles falam que se nós não formos, podemos pegar uma falta. Vão ficar de marcação com a gente, e a gente é desligado porque nós não fomos nesses conflitos”, conta
Depois da denúncia sobre a situação do trabalho, veio a demissão. Em seguida, vieram as ameaças e o medo: de perder a vida, do desemprego, do futuro na cidade. Agora, o ex-funcionário aguarda o depósito das parcelas do seguro desemprego e espera se restabelecer.
“Eu já recebi ameaças de pessoas me ligando, de números que não sei de quem eram falando que isso não ia ficar assim. Meus colegas até me deram conselhos para que eu pudesse me retirar do estado, da cidade, porque isso é uma coisa muito grave. Eu estou cabisbaixo, sem forças para lutar, para continuar, porque mexeu muito com meu psicológico”, lamenta o trabalhador dispensado.
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
O grupo Brasil Bio Fuels (BBF) disse à reportagem que “preza pela saúde e segurança de seus colaboradores e adota as melhores práticas para oferecer condições de trabalho adequadas”. De acordo com a organização, somente no estado do Pará, 5 mil colaboradores atuam nas dependências da empresa. Do total, 3,5 mil realizam atividades de campo.
“Os EPIs fornecidos pela BBF são os mais seguros do mercado e destinados especificamente para essa atividade, além de analisados, testados e aprovados tecnicamente. Isso faz com que a BBF seja reconhecida na região e no mercado em que atua como referência em boas práticas de segurança aos seus colaboradores”, informou a empresa.
Segundo a BBF, cada unidade possui ambulatórios com médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem capacitados para atender os colaboradores. Sobre a alimentação, a empresa disse seguir “todas as exigências da Vigilância Sanitária para manuseio de alimentos, higiene e utensílios”. De acordo com a organização, há restaurantes próprios em todos os polos de atuação no Pará, nos municípios de Moju, Concórdia do Pará, Tomé-Açu e Acará.
Bahia: onde o ouro líquido é um tesouro abandonado
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
O caminho onde o ouro líquido impera no Brasil é marcado por contradições. Localizado a mais de 2 mil quilômetros de Belém (PA), o município de Valença, na Bahia, é como uma mina de ouro para os povos tradicionais. Ali, concentra-se grande parte da produção baiana de dendê . A cidade é um dos 15 municípios da Costa do Dendê, no baixo sul do estado.
Ao contrário do que se vê entre as comunidades quilombolas do nordeste paraense, a relação com o dendê para os baianos é ancestral. De acordo com o pesquisador Alcides dos Santos Caldas, do Departamento de Geociências da Universidade Federal da Bahia (UFBA), estudos apontam que o fruto chegou ao país por meio do tráfico negreiro durante a escravização de africanos de diversas nações, especialmente da costa oeste do continente.
Após o desembarque em território brasileiro, o dendê se misturou com a vegetação nativa e transformou os costumes afro-brasileiros na Bahia, junto a uma série de outros elementos, como religiosidade e gastronomia. O vínculo é sagrado.
“O acarajé que a gente tem hoje é, na realidade, um produto africano. Existe até hoje no Benin, onde se chama ata, e na Nigéria, onde vai se chamar acará. Aqui, vamos chamar de acarajé — e o verbo jé, em iorubá, significa comer. No idioma, comer acará significa comer bola de fogo, a comida de Xangô”, conta Alcides.
A riqueza presente nos cachos de dendê também é ressaltada por Taata Luangomina, sacerdote do terreiro de candomblé Bem Viver Graciosa. O centro é localizado em Taperoá, município que faz divisa com Valença e abriga a comunidade quilombola Graciosa. O terreiro também abriga um importante espaço de manutenção da cultura da região: o Museu da Costa do Dendê de Cultura Afroindígena.
O objetivo do museu é defender o legado ancestral afro-indígena no baixo sul da Bahia. A força e a resistência desses povos é ligada pela simbologia que os dendezeiros têm na cultura local. “O dendê é um elemento fundante do nosso museu, da produção identitária que reside nas lutas que travamos como pretos e indígenas. O dendê é sustento, é sangue africano dentro desse território”, conta o sacerdote.
O sacerdote Taata e o professor Alcides fazem parte do grupo de baianos que buscam apoio dos governos estaduais e federais para a produção do dendê no baixo sul da Bahia. Iniciativa da UFBA e de agricultores da região espera solicitar o registro de denominação de origem ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).
A ideia é regularizar o processo de indicação geográfica (IG) do dendê do baixo sul da Bahia, conferindo ao produto o certificado de identidade própria e de distinção dos similares disponíveis no mercado. É o mesmo processo conferido ao champanhe produzido na França, por exemplo. Na Bahia, existem quatro produtos com registro de indicação geográfica: a cachaça Abaíra, o café do oeste do estado; as uvas do Vale do São Francisco; e as amêndoas do cacau.
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
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Mina de ouro abandonada
Em 2020, o cultivo de dendê na Bahia teve um declínio que causou prejuízos em toda a cadeia que utiliza o produto diariamente no estado. De acordo com o engenheiro agrônomo Adailton Francisco dos Santos, 46 anos, a queda está ligada à decadência da dendeicultura na Bahia.
“É comum encontrar produtores que estão desanimados, não renovam as suas plantações e estão substituindo por outros cultivos. Com isso, ficamos cada vez mais dependentes do azeite que vem de fora, da Região Norte do país. Lá eles concorrem com o mercado internacional. O dólar subiu,a nossa produção caiu bastante e os preços dispararam”, explica.
O aumento impactou o trabalho de milhares de baianas de acarajé. Segundo a Associação Nacional das Baianas de Acarajé, no início de 2020, um balde de 14 litros de azeite tinha preço médio de aproximadamente R$ 64. Agora, o mesmo produto chega a R$ 180.
“O dendê pra baiana é o ouro do tabuleiro. Sem o dendê, não consigo preparar nenhum dos meus quitutes. Ele é necessário para temperar meu vatapá, o caruru, fazer o abará. E principalmente para fritar o acarajé. Não existe outro óleo para isso, e sem o dendê não existe o acarajé”, conta Ana Cássia Pereira Nery, de 40 anos.
Ao lado do irmão, Ana Cássia comanda o Acarajé da Tânia, barraca que pertencia a Tânia Nery, sua mãe. A banca fica ao lado do Farol da Barra, um dos principais pontos turísticos de Salvador, na Bahia.
Ana Cássia Pereira Nery é dona do Acarajé da Tânia, quiosque de acarajé que fica no Farol da Barra, em Salvador. Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
“Sou baiana de acarajé desde a barriga da minha mãe. Aqui é um ponto hereditário: começou com a minha bisavó, passou para a minha avó e depois para minha mãe. E hoje passou para mim e para o meu irmão”, explica.
Além de toda a relação sociocultural com o dendê, a baiana ressalta que o fruto representa ganho de dignidade: a venda do acarajé gera renda e é fundamental para o sustento da família. “Me faz viver, nascer e renascer todos os dias. A vida da baiana de acarajé não é fácil. Por trás dela tem uma mãe de família. Hoje, ser baiana se tornou uma profissão”, conta Ana, orgulhosa.
Apesar do amor pelo trabalho, a produção dos quitutes vendidos pela baiana tem sido dificultada nos últimos anos devido à crise na produção do dendê na Bahia. Com a baixa produção estadual, as baianas têm recorrido ao azeite importado do norte do país.
A produção paraense, no entanto, não é a mais adequada para uso gastronômico. Ana explica que o melhor azeite é o de pilão, fabricado de forma artesanal na Costa do Dendê. Sem incentivo na produção local e com altos preços oferecidos pelo mercado paraense, a fabricação dos quitutes tem pesado no bolso.
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“O dendê continua muito alto pra gente. Damos aquele jeitinho brasileiro, tentamos repassar o valor para o cliente para não deixar de ter a nossa renda. Tá ficando difícil. Nós, baianas, vendemos o acarajé e necessitamos do dendê. Se os governantes dessem incentivo aos locais que fabricam no estado, seria uma ajuda a mais para todas nós”, explica.
A luta no estado é pela valorização da produção local. O engenheiro agrônomo Adailton dos Santos também é coordenador do eixo Dendê no Colegiado Territorial do Baixo Sul da Bahia (Codeter). O profissional atua em parceria com os agricultores familiares da região para cobrar mais investimentos do governo estadual na área.
Adailton Francisco é engenheiro agrônomo e coordenador do Eixo Dendê no Colegiado Territorial do Baixo Sul da Bahia. Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
“Estamos com uma dependência muito grande do azeite que vem de fora. O que a gente espera que aconteça é que tenhamos investimentos no dendê da Bahia, que o agricultor tenha acesso ao crédito, a uma assistência técnica. O dendê na Bahia não deve ser olhado só como questão econômica, tem o lado social. Tem a questão ambiental, porque ele está inserido na nossa área de Mata Atlântica. Tem a questão religiosa, culinária, gastronômica. Estamos falando de história”, afirma Adailton.
Diante das acusações do grupo quilombola, a Agropalma afirmou ao Metrópoles que “jamais ocupou espaços que não fossem seus”. “Todas as suas terras foram adquiridas de boa-fé de seus legítimos proprietários e possuidores, inclusive com a confirmação da documentação pelos órgãos competentes na época da aquisição”, disse a organização, mesmo com o cancelamento de matrículas realizado no Iterpa.
Sobre a situação fundiária da empresa, a Agropalma afirmou que ocupa “legitimamente” as áreas das fazendas Roda de Fogo e Castanheira desde 2006. “Quando a empresa tomou conhecimento de inconsistências na documentação dos registros imobiliários de ambas as áreas, a Agropalma entrou imediatamente com pedido de regularização das áreas no Instituto de Terras do Pará (Iterpa) em janeiro de 2017, conforme determina a legislação. Ou seja, antes mesmo que os títulos fossem cancelados por causa dos apontamentos feitos pela Polícia Federal, a Agropalma já estava regularizando a documentação fundiária dessas áreas”, alegou a companhia.
Sobre a ocupação realizada pelos quilombolas em fevereiro deste ano, a empresa afirmou que o grupo “se autorreconheceu quilombola” e declarou estar fixando moradia no local, reivindicando a propriedade da terra.
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
“Em função dessa situação, foi realizada uma audiência de conciliação entre as partes no dia 17/2, na qual ficou definido que as pessoas deixariam o local e a Agropalma voltaria ao status quo anterior ao evento da invasão, ou seja, que as pessoas poderiam usar as estradas internas da empresa, entre a Vila dos Palmares e o rio Acará, desde que cadastrados e identificados na portaria da empresa, conforme indicação da associação que mobilizou esse movimento. O acordo formal foi negociado entre as partes, perante o juiz competente e com a presença da Defensoria Pública e do Ministério Público do Estado do Pará, que também concordaram com os termos”, informou a organização.
Conforme a empresa, após o estabelecimento do acordo, os quilombolas deixaram a ocupação, e os obstáculos que impediam a entrada na região foram retirados.De acordo com a organização, em audiência de conciliação realizada em 3 de junho, a lista de entrada na área gradeada foi atualizada com o cadastro de 163 novos moradores.
Sobre os conflitos com quilombolas, a empresa disse ter “vencido o desafio de gerenciar a situação sem que o uso da força fosse necessário”, apesar da circulação de imagens em que um segurança aparece utilizando arma de fogo.
“A partir da entrada e acampamento não autorizado de um grupo de pessoas em sua fazenda, a Agropalma fez valer seu direito legal ao desforço imediato e atuou para dificultar que mais pessoas chegassem ao local. Construímos duas valas e instalamos um conjunto de barreiras que foram eficazes para impedir a entrada de veículos com mais pessoas, sem que fosse necessária a confrontação entre seguranças e os membros do movimento. No período em que as pessoas estiveram acampadas, houve muitas interações, mas nenhum confronto”, divulgou a organização.
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
A Agropalma afirmou desconhecer “qualquer fato” relacionado ao furto de bicicletas e objetos pessoais de moradores da região. A empresa citou que “os seguranças que prestam serviços para a empresa são treinados e orientados a nunca adotarem comportamentos que não estejam alinhados ao respeito, à ética e ao bem-estar das pessoas e das comunidades onde a companhia atua”.
Sobre a questão ambiental, a empresa afirmou que abriga mais de 400 espécies de aves na área que fica sob sua responsabilidade. “Pesquisadores da UFPA têm ressaltado que, “do ponto de vista da conservação ambiental, esses fragmentos remanescentes de floresta são chave para a preservação das espécies e a área da Agropalma é extremamente importante para isso”, pontuou.
“A Iniciativa Nacional para a Conservação da Anta Brasileira (INCAB), do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), já mostrou que a cultura perene da palma minimiza o que se chama de efeito de borda nas reservas florestais, ou seja, as palmeiras plantadas ao lado das florestas protegem as bordas das matas contra o fogo, os ventos fortes, a insolação e outros agentes de degradação, além de diminuir o nível de isolamento da área para algumas espécies da fauna. Por isso, as florestas da Agropalma são de suma importância para a preservação da biodiversidade deste trecho da Amazônia, protegendo uma série de espécies ameaçadas de extinção”, defendeu a empresa.
Sobre os rios, a Agropalma alegou que não descarta rejeitos nas águas e faz “controle periódico da qualidade da água e solo em áreas específicas do plantio para garantir que não haja impacto ambiental”.
O QUE DIZ A EMPRESA?
Ao Metrópoles a BBF afirmou que “não opera drones em nenhum território indígena ou quilombola”, e que não instala câmeras de segurança nas localidades. No entanto, a organização disse operar Veículos Aéreos Não Tripulados (VANT) “em suas próprias áreas”, com objetivo de “verificar, fiscalizar e impedir o cometimento de crimes ambientais”.
A empresa também afirmou que não descarta rejeitos em nenhuma área de operação, e que utiliza todo o fruto do dendê. O produto, resultado da extração do óleo de palma, é reutilizado como fertilizante natural, alega a companhia.
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
“Depois de extraído o óleo, a água do cozimento do fruto é aproveitada como fertirrigação, ou seja, ela é devolvida para as plantas nas áreas da empresa, por meio de um processo 100% natural. Essa água do cozimento do fruto serve de adubo natural para as próprias plantas, evitando a utilização de matéria química. Essa é uma escolha da empresa, buscar o equilíbrio socioambiental e não utilizar fertilizantes em larga escala, mesmo detendo todas as licenças para isso”, informou a companhia.
Sobre o apodrecimento de vegetais, a BBF defendeu que não há registros de casos nas áreas que estão sob o controle da empresa. No entanto, admitiu que existe alta incidência de insetos, mas atribui a situação à “invasão das terras da empresa”. O grupo ainda acusou indígenas e quilombolas de furtarem dendê.
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
“Desde que indígenas e quilombolas invadiram muitas das áreas da companhia (mais de 10 mil hectares invadidos) para furtar e roubar os frutos do dendê, em razão do valor de mercado das commodities, a BBF está impedida de entrar em suas áreas e, desta forma, não consegue realizar a manutenção necessária nas plantas e manter o necessário equilíbrio ambiental”, alegou a organização.
“Além disso, existe o perigo real, e iminente, de insetos e pragas se espalharem por outros cultivos, não só de palma. Essa situação preocupante e muito prejudicial ao meio ambiente já foi comunicada formalmente ao Ministério da Agricultura e à Adepará, para que realizem o manejo da fitossanidade, mas até o momento a BBF não obteve resposta“, informou a empresa.
O grupo disse que as atividades realizadas são classificadas como “de baixo impacto ambiental pelos órgãos competentes”, e que não causam envenenamento de rios e igarapés e não afetam territórios em comunidades indígenas e quilombolas.
O Ibama afirmou que as empresas BBF e Agropalma não fazem parte dos processos de licenciamento que são competência da autarquia. A Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) não respondeu aos questionamentos do Metrópoles sobre o tema.
Ainda acusando os indígenas de furto, a BBF informou que “não obteve qualquer resposta do poder público do estado do Pará por ocasião do registro de mais de 630 boletins de ocorrência noticiando roubos e furtos de dendê, de maquinários e de tratores”.
“Também não houve qualquer resposta do poder público do estado do Pará no que diz respeito a fazer cumprir as ordens judiciais de reintegração de posse e interdito proibitório favoráveis à empresa. A companhia busca insistentemente apoio dos órgãos governamentais para a solução do caso, fato que pode ser corroborado com dezenas de ofícios enviados às autoridades do estado, municípios e até no âmbito federal”, informou a BBF.
O QUE DIZ O GOVERNO DA BAHIA ?
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
Procurada pelo Metrópoles, a Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR) da Bahia afirmou que o estado está investindo cerca de R$ 3,5 milhões em ações voltadas para o processamento e beneficiamento do dendê nos territórios do baixo sul e Recôncavo Baiano, via Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR).
“Os investimentos realizados pela CAR são por meio do Projeto Bahia Produtiva, que visa dotar os agricultores e as agricultoras familiares e suas organizações produtivas de infraestrutura necessária, com a implantação de unidades modernizadas de beneficiamento e processamento do dendê, para qualificar a produção do azeite”, informou o governo.
De acordo com a autarquia, as famílias recebem assistência técnica e extensão rural (ATER), ofertada pela Superintendência Baiana de Assistência Técnica e Extensão (Bahiater), unidade da SDR. “Atualmente, 7.236 famílias estão recebendo o serviço, por meio de ação direta e indireta da Bahiater/SDR, e em parceria com entidades de ATER conveniadas, prefeituras municipais e consórcios públicos”, afirmou a secretaria.
O órgão também disse ter parceria com a UFBA, Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Instituto Federal Baiano e outras instituições para implementar o projeto de identificação geográfica do azeite da Costa do Dendê.
O projeto “pretende qualificar todas as etapas, desde as boas práticas da colheita, processamento e beneficiamento do dendê, e acesso ao crédito, assim como na garantia da articulação do mercado e da comercialização”, informou o governo.
Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles
“A Bahiater/SDR, em parceria com a Secretaria de Agricultura de Taperoá, viabilizou o cadastro das propriedades rurais com produção de dendê no município de Taperoá, o que permitiu um diagnóstico dessa atividade, uma vez que os dados estatísticos oficiais disponíveis estão defasados. A intenção é expandir esse cadastro para os demais municípios que cultivam a palma. Com o cadastramento, será possível obter uma leitura da real situação e o fornecimento de subsídios para uma ação efetiva do governo do estado, por meio da SDR”, continuou a autarquia.
O governo ressaltou a importância histórica e cultural do dendê para o Brasil e para a Bahia, mas admitiu que a “sustentabilidade da dendeicultura no estado é um desafio para as políticas públicas” locais.
“Por isso, a SDR reconhece a necessidade de formar um grupo de trabalho (GT) específico, juntamente com outros parceiros, para tratar dessa importante cultura, de forma a minimizar os problemas que ultimamente têm ocorrido, principalmente, no que se refere à inovação tecnológica e à substituição de equipamentos que estão ultrapassados para a colheita, visando modernizar o processo e permitindo que o agricultor e a agricultora possam colher os frutos sem os sacrifícios árduos, como a subida nos troncos com as “peas”, melhorando a qualidade de vida desses agricultores e agricultoras familiares, além de promover a conservação ambiental”, concluiu.